Família / Materiais

(Por Hugo Eiji)

Se os estudos sobre a família, hoje, esbarram em minúcias derivadas das inúmeras mudanças em suas relações internas, abordar esse objeto inserido no escopo dos Estudos Surdos é tarefa ainda mais espinhosa.

Monogâmicas, poliafetivas, heterossexuais, homossexuais, cristãs, muçulmanas, pobres, ricas, estendidas, urbanas, rurais, escolarizadas, não-escolarizadas… São milhares de atributos que reconfiguram as dinâmicas familiares, refazendo constantemente as formas de se conviver com o outro com quem temos, ou não, parentesco.

Dentre as várias possibilidades de se existir em família, a surdez surge como mais um elemento a redesenhá-la, redefini-la e compreendê-la.

Não se assume, aqui, a família surda (ou aquela composta por um ou poucos indivíduos surdos nascidos em “berço ouvinte”) moldada sob os padrões estereotipados de famílias nucleares heterossexuais, monogâmicas e cristãs, formadas por mãe, pai e filhos: entende-se, ao contrário, a surdez como intricada em diferentes (possíveis) arranjos familiares.

Os conceitos de família e cultura unem-se de maneira indissociável: ao mesmo tempo em que as configurações e dinâmicas familiares são atravessadas e regidas pelos imperativos das culturas em que se fundam, as famílias são também núcleos de (re)produção de práticas culturais, onde os sujeitos assimilam e incorporam teias de significados que os ordenam e que dirigem as comunidades de que fazem parte.

Assim, destacam-se as diferenças na constituição de identidades de um sujeito surdo criado em família ouvinte e outro nascido em família surda (em que grande parte dos membros são surdos). As dinâmicas internas dessas diferentes famílias, o aprendizado de várias práticas simbólicas e os processos de endoculturação dão-se sobre diferentes eixos, (re)definidos por substratos culturais distintos [1].

A maioria dos surdos [2] faz parte de famílias ouvintes, o que não raro os empurra a outros lugares para conviverem com demais Surdos: na escola, em associações, organizações, instituições, movimentos ou espaços não formais, como festas e pontos de encontros. Outros lugares que não o ambiente doméstico. Muitas vezes essa estraneidade é ainda agravada pela não-aceitação da surdez por parte de seus familiares, que – como muito se vê – esforçam-se para normalizar o “patinho feio” (ou  “patinho surdo” [3]) com quem convivem. Numerosos ajustamentos ouvintistas são inculcados sobre os sujeitos surdos, que, por vezes, só encontram novas possibilidades de existir (as identidades e culturas surdas) quando jovens ou já adultos – o que não admira, mas provavelmente consternará.

Não se pretende aqui demonizar ou julgar como algozes os familiares ouvintes de indivíduos surdos, tampouco esmiuçar essa problemática cheia de contradições, mas busca-se, antes, apontar para os desdobramentos desses atos de normouvintização sob a perspectiva dos estudos sobre a diferença. Mais que colocar em xeque as ações cuidadosas e de benquerença dos familiares de surdos, ou fazer ruir a boa intencionalidade de suas ações, cabe problematizar os pressupostos desses gestos, a forma branda como operam e seus desdobramentos.

Em relação às famílias surdas (em que a maior parte dos membros são surdos), vê-se uma enorme diferença quanto ao reconhecimento e ao trato com a surdez. A língua comum (em geral as línguas gestuais), o cotidiano do lar, as conversas em família, os vários objetos domésticos que se espalham pela casa, as questões do dia-a-dia, as tradições familiares (como festas, encontros, comemorações) e uma série de hábitos são reconfigurados pelas exigências da experiência visual e pela assumpção das identidades Surdas. Stroebel (2008) afirma que, nesse âmbito, mesmo as relações de sujeitos Surdos com os seus animais de estimação apresentam peculiaridades quando comparadas ao trato dado pelos sujeitos ouvintes (como o uso de sinais de mão e expressões faciais – ao invés da voz – para se comunicarem, alertas visuais, etc.).

Vale ressaltar que os casamentos e as parcerias endogâmicas são muito comuns nas comunidades surdas e que, ao contrário de muitas famílias ouvintes que encaram o nascimento de uma criança surda como um momento de luto e frustração, a novidade de um rebento surdo é geralmente recebida com alegria por seus familiares também Surdos.

Nesses casos, o ambiente familiar figura como um espaço de partilha linguística, onde adultos e crianças conseguem trocar, desde cedo, conversas, conselhos, ralhos, piadas, ensinamentos… em uma interação fluida, sem grandes obstáculos de comunicação, por meio de uma língua comum (que é adquirida com muito mais facilidade pelos pequeninos). Jovens e crianças surdas, no contato com adultos Surdos, ganham referências e modelos de comportamentos bastante visíveis e empáticos, com os quais podem afinar suas expectativas, seus desejos e suas ações. As práticas Surdas, nesse convívio próximo, são mais facilmente internalizadas, em um processo contínuo de aprendizado e (re)ajustamentos.

Em uma primeira visita a uma casa de surdos, alguns aparelhos logo chamam a atenção: em especial aqueles que transformam avisos sonoros em sinais luminosos ou vibratórios. Assim, uma campainha luminosa logo se acende, ao cimo da porta, quando acionada – comumente também piscam luzes pela casa. O telefone, que muitas vezes possui teclado alfabético (assim como os telefones públicos acessíveis para o público surdo, chamados de TDD – do inglês Telecommunications Device for the Deaf), também apita por pisca-pisca de luzes. Despertadores vibratórios, babás eletrônicas que reconhecem o choro de bebês e acionam avisos luminosos no quarto dos pais, televisões com closed-caption continuamente ativado (quando são disponibilizados), além de outros vários gadgets que permitem aos surdos usufruírem sem grandes prejuízos de objetos que – geralmente – fazem uso do som, compõem a mobília de muitos lares de surdos.

Além das famílias surdas e das famílias ouvintes que esperam de seus filhos surdos padrões de comportamentos ouvintes, destacam-se – a cada dia mais numerosas – as ações de familiares ouvintes (de crianças surdas) que, por reconhecerem a importância das culturas surdas e das línguas de sinais para o processo de formação de seus filhos, buscam a integração e a inclusão destes não só no universo dos que ouvem, mas também no mundo Surdo. Não raro buscam profissionais, instituições de apoio, escolas e associações que permitem novas vivências Surdas aos seus filhos. Nesses espaços, conseguem não só apoio para as tarefas de educação dos pequenos como os introduzem a um mundo de novos significados.

 

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[1] No que diz respeito às práticas culturais surdas ou não.
[2] As informações não são rigorosas, dado as imprecisões no recenseamento desses dados, mas estima-se que mais de 90% dos surdos fazem parte de famílias ouvintes.
[3] Como brinca o título de um livro infantil escrito por Lodenir Karnopp e Fabiano Rosa (2005).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

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