(Por Hugo Eiji)
Durante as Idades Média e Moderna, novos cenários se desenharam para os indivíduos surdos [1]: se, em alguns contextos, foram marginalizados e tidos como não educáveis, em outros passaram a contar com esforços assistenciais, caritativos e instrucionais [2].
De sujeito sem acesso à salvação – “já que, de acordo com Paulo na Epístola aos Romanos, a fé provém do ouvir a palavra de Cristo (Ergo fides ex audito, auditur autem per verbum Christi)” (CAPOVILLA, 2000, p. 100) –, o surdo passou a ser, em certos momentos, objeto de evangelização. Em outros, donatário de educação formal. As transformações sociais, culturais, econômicas e religiosas que eclodiram no período renascentista desdobraram-se também em novas formas de se olhar a surdez, sustentando novos pressupostos para os esforços voltados aos “surdos-mudos”.
Entre esses esforços, comumente é citado o trabalho do monge beneditino Pedro Ponce de León (1520-1584), um dos primeiros educadores de surdos de que há registos no mundo ocidental.
Aqui, a entremear o fio da narrativa, vale antecipar-se à escrita sobre León para contextualizá-lo no âmbito de algumas práticas religiosas da época – como o monasticismo e o uso de sistemas gestuais de comunicação –, descrevendo-as de maneira breve:
O monasticismo, como uma nova forma de martírio e devoção cristã, consolidou-se no início da alta Idade Média com o surgimento de grandes ordens monásticas. Em muitos mosteiros, além dos votos de pobreza, castidade e obediência, zelava-se pelo voto do silêncio.
“O silêncio no período monástico, segundo regras estabelecidas por São Basílio Magno (Igreja oriental) no século IV d.C., era determinado para os noviços com o objetivo de levá-los a desvestirem-se dos costumes anteriores, purificando-se no silêncio para aprender uma nova maneira de viver. Entendia-se que o contato com o mundano contaminava a alma, e o silêncio tinha a função de apagar as lembranças da vida pregressa, como se vê no texto da regra” (REILY, 2007, p. 312).
E para se garantir a efetivação de tal voto, comunidades monásticas – entre elas algumas beneditinas – desenvolveram sistemas gestuais formados por sinais simples, levando a cabo uma comunicação silenciosa durante os seus afazeres diários [3]. Cumpria-se, assim, a descontaminação da alma e a purificação dos costumes.
Registos instrucionais permitiam a normatização, a coesão e a partilha dessas linguagens, oficializando-as no interior de comunidades religiosas. “Um dos mais antigos documentos preservados (provavelmente copiado entre 910 e 1000 d.C., segundo a organizadora da edição), em inglês arcaico, da ordem beneditina, é denominado Monasteriales Indicia.” [4] (REILY, 2007, p. 313).
No entanto, são poucos os vestígios que indicam a maneira como se davam as trocas comunicativas em sinais dentro dos monastérios, e ainda mais raros são os registos que dão pistas de como (e se) esse índice era usado para a difusão dos sistemas simbólicos entre monges e religiosos de outras prelazias.
Pedro Ponce de León, monge beneditino do mosteiro de Oña (Burgos), partilhava desse contexto e dessas práticas – mesmo que algumas delas, como hoje se imagina, existissem apenas de forma residual.
Inúmeras lacunas tornam áridas as investigações sobre o religioso espanhol: fontes são raras e imprecisas, informações conflitam e muitos dissensos fazem-se presentes [5]. Sua atuação, porém, independentemente dessa ou daquela afirmação, é assumida como um dos principais marcos na história da educação de surdos.
“Seu trabalho não apenas influenciou os métodos de ensino para surdos no decorrer dos tempos, como também demonstrou que eram falsos os argumentos médicos e filosóficos e as crenças religiosas da época sobre a incapacidade dos surdos para o desenvolvimento da linguagem e, portanto, para toda e qualquer aprendizagem” (LODI, 2005, p. 411).
O ensino da leitura, da escrita e da oralidade para jovens e crianças surdas – em um contexto marcado pela descrença de que o “surdo-mudo” pudesse se fazer educável – era prática incomum, não corrente. A “salvação” do surdo, bem como seu trato e sua normalização, dava-se popularmente como ato milagroso, associado a processos inexplicáveis de cura, distante da ideia de qualquer esforço metodológico inscrito no âmbito da instrução formal.
A despeito disso, em sua tarefa de ensinar os irmãos Francisco e Pedro de Velasco [6] a ler, escrever e falar (assim como fez com outros jovens surdos encaminhados ao mosteiro), Ponce de León contribuiu para promover novas perspectivas sobre as possibilidades de aprendizado de pessoas surdas. Assim fizera, também, o cientista italiano Girolamo Cardano (1501-1576) ao confirmar publicamente a habilidade do surdo em raciocinar, uma vez que “a escrita poderia representar os sons da fala ou ideias do pensamento” (SILVA, 2006, p. 17). Estar privado do universo sonoro não implicava, para esses filósofos e educadores, estar impedido de aceder à linguagem, ao pensamento lógico e ao raciocínio.
Vale sublinhar que os esforços da educação de surdos eram, durante a Idade Média, comumente assumidos por iniciativas religiosas e destinavam-se a um (muito) restrito grupo de crianças e jovens, membros das nobrezas locais. A contextualização histórica dessa clientela faz-se necessária para problematizar a ideia, por vezes vulgarizada, de que a partir do século XVI “os surdos” (em sua totalidade) passaram a contar com espaços de educação formal.
As instruções desses (poucos) jovens surdos, dadas em grande parte sob a forma de preceptorado, situavam-se em contexto aristocrático, em uma estrutura social marcada por desigualdades e privilégios estamentais. Para além da benevolência caritativa e das intenções evangelizadoras dos preceptores religiosos estão os interesses econômicos, sociais e culturais de membros de uma aristocracia que, até então, contava com muito poder. Pretendia-se, sobretudo, a preservação das garantias nobiliárquicas dos herdeiros “surdos-mudos” [7], enquanto a maior parte do povo surdo continuava a enfrentar uma série de descasos e infortúnios, sobrevivendo à míngua de quaisquer direitos.
O que se destacam dessas iniciativas, como as de Pedro Ponce de León, de Joaquim Pascha – que no século XVI também “treinou dois de seus próprios filhos surdos” (BERTHIER, 1984 apud NASCIMENTO, 2006, p. 257) –, de Ramirez de Carrión (educador espanhol), de Girolamo Cardano, de Juan Pablo Bonet [8], entre as de outros protagonistas conhecidos (e desconhecidos) dos séculos XVI e XVII, são as novas concepções que firmaram sobre a surdez e sobre o ensino/aprendizado de indivíduos surdos – concepções que em grande medida contribuíram para que fossem revistas as crenças da não-educabilidade irremediável e da condição não-humana desse grupo.
As possibilidades de trato e de “cura” do indivíduo surdo começaram a abandonar o terreno do sobrenatural e fincaram-se em bases pedagógicas, rompendo velhos postulados filosóficos, médicos e religiosos. Se não é simples mensurar o impacto que tais feitos causaram na época, hoje essas empreitadas firmam-se como importantes marcos teóricos na história da educação de surdos – seja pelas mudanças epistemológicas que promoveram, seja pelos diferentes aspectos metodológicos que introduziram [9].
No século XVIII, o terreno movediço da educação de surdos na Europa foi revolvido por uma série de acontecimentos, no bojo das profundas transformações sócio-políticas e culturais que se desdobravam no continente. As agitações burguesas e os discursos universalizantes sobre educação fizeram-se panos de fundo para os afazeres de alguns educadores, como Samuel Heinicke e Charles-Michel de l’Épée.
Heinicke (1729-1790), conhecido como o “pai do método alemão”, fundou as bases das abordagens oralistas contemporâneas: aos indivíduos surdos cabia o aprendizado da fala, por exercícios de oralização, para que tivessem, então, acesso ao mundo letrado. Muitas das pedagogias que se desenvolveram a partir do oralismo puro – posto em prática em sua instituição para surdos em Leipzig no último quartel do século XVIII – ecoam até hoje em espaços escolares e em centros de reabilitação de diferentes países.
Por essa abordagem, as “linguagens de sinais” não eram bem-vindas: primava-se, antes, pela ortopedia da fala, pela articulação de fonemas, pelo aprendizado de um modelo ouvinte. O uso de gestos, de acordo com uma série de profissionais de outrora (e de agora), prejudicaria o aprendizado da língua oral majoritária, criando nós no esforço de desmutização dos jovens e das crianças surdas.
Ao contrário de Heinicke, Charles-Michel de l’Épée, em seu abrigo para surdos de Paris [10], apoiava-se em um sistema gestual – com sinais incorporados das linguagens usadas por surdos que ingressavam na instituição [11] – para o ensino de várias disciplinas. Os “sinais metódicos”, como foram chamados, formavam-se a partir do entrelaçamento de itens lexicais (gestos) desses “dialetos surdos” com sinais criados e reapropriados [12] por l’Épée. Contudo, diferente das linguagens correntes nas comunidades surdas da época, os sinais metódicos respeitavam a estrutura sintática do idioma francês (MOORES, 2010), o que facilitava o ensino da leitura, da escrita e da fala da língua dominante.
Álgebra, geografia, latim, artes e ofícios: por meio de uma linguagem gestual (assumida por l’Épée como o meio, por excelência, de comunicação e aprendizado dos surdos-mudos), os educadores ensinavam os vários conteúdos curriculares para os estudantes da instituição.
De maneira oposta à pouca publicização das obras de outros educadores de surdos, as metodologias usadas na instituição (anos mais tarde assumida pelo Estado e nomeada Instituto Nacional de Surdos-Mudos de Paris) foram bastante divulgadas. Os métodos iniciados por l’Épée, bem como os sinais metódicos e suas abordagens pedagógicas, foram, pouco a pouco, sendo reconstruídos e aprimorados por estudantes e profissionais surdos [13] e ouvintes que tomavam parte nas atividades da escola, como Abade Sicard, Jean Massieu, Auguste Bébian, Laurent Clerc e Ferdinand Berthier. Na época, o então Instituto figurava como “centro irradiador de um ideário científico e modelo educacional para diversos países, contextualizado pelo projeto de uma instrução pública para todos” (LULKIN, 2005, p. 34).
Os esforços de l’Épée, assim como os de Heinicke ou os de Pereira [14], consolidavam-se em meio aos novos ideais burgueses universalistas, democratizantes e liberais. O Instituto, que recebia jovens surdos de camadas baixas do país, tinha como uma de suas prioridades a formação profissional dessa clientela e a inserção desse grupo no mundo do trabalho. Ao contrário da instrução elitista e proselitista dada por preceptores e ordens monásticas a alguns poucos privilegiados nos séculos XVI e XVII, a empreitada de l’Épée buscava se popularizar, fazendo-se acessível para grande parte do povo surdo – e possibilitando ao Estado francês, assim, a inclusão desse grupo (em grande parte marginalizado) às esferas de produção de uma incipiente organização econômica capitalista industrial.
Em qualquer período histórico, a experiência da surdez é (re)configurada por um sem-fim de fatores. Os fatos descritos aqui, ou em outros historiais sobre a surdez, não seguem uma linha harmônica, estável, descolada dos acontecimentos de fundo de onde se dão: ao contrário, são resultados de conflitos, lutas e contradições; produzem e são produzidos pelos momentos históricos em que estão ancorados. À semelhança de outros fenômenos sociais, são atravessados por interesses de classe, relações de poder, políticas de Estado e formações discursivas específicas.
Durante os séculos XVIII e XIX, marcados por uma série de agitações, distensões, rupturas e revoluções, o cotidiano dos surdos também foi revolvido por novas demandas, possibilidades e horizontes.
Com o desenvolvimento das grandes cidades e dos vínculos tecidos entre sujeitos surdos, as línguas de sinais passam a habitar – ainda mais – as trocas comunicativas no interior desses grupos, fortalecendo a coesão e o crescimento das novas comunidades surdas urbanas.
Professores e profissionais surdos começaram a ocupar novos postos de trabalho; as escolas para surdos (sejam as fundadas sob imperativos gestualistas, influenciadas pelas abordagens de l’Épée, sejam as pautadas pelas exigências oralistas, inspiradas pelo trabalho de Heinicke, Pereira, Wallis [15] ou Amman [16], entre outros) começaram a se espalhar por outros países para além da Europa, como Estados Unidos e Brasil.
“Em meados do séc. XIX havia mais de cento e cinquenta escolas na Europa e vinte e seis nos Estados Unidos que usavam a língua gestual. A educação de surdos estava em seu período de ouro. Os surdos tinham acesso à educação por meio da sua língua materna. Na Europa e na América cada vez mais alunos surdos completavam a educação básica. Foram lançados então os cursos secundários para surdos em Hartfort, Nova Iorque e Paris. Os alunos surdos tiveram pela primeira vez a possibilidade de continuarem os seus estudos, tornando-se muito deles professores de surdos. Em meados do século dezanove metade dos professores nas escolas americanas e francesas eram surdos (hoje são uma raridade)” (COELHO; CABRAL; GOMES, 2004, p.168).
Nesse período, o confronto entre propostas gestualistas e abordagens oralistas na educação de surdos em muito se acirrou no continente europeu e em outras regiões do mundo. Se parte cada vez maior dos educadores defendia o uso de sinais como o melhor instrumento de ensino/aprendizagem de indivíduos surdos, outra parte apoiava-se em propostas oralistas, que assumiam o aprendizado da fala como um dos principais objetivos do ato pedagógico, evitando e coibindo – por isso – o uso de linguagens gestuais [17].
Na América do Norte, o cisma entre os profissionais que apregoavam formas manualistas na educação de surdos e os que afirmavam o primado da língua oral opôs professores e investigadores como Alexander Graham Bell, entusiasta de abordagens oralistas, e Edward Gallaudet, educador alinhado às proposições gestualistas e introdutor do método combinado [18] em escolas para surdos estadunidenses.
Essas cisões entre diferentes abordagens e metodologias de ensino não se resumiam a um simples desacordo pedagógico, mas refletiam, sobretudo, concepções dissonantes quanto às possibilidades de o surdo tomar parte na vida cotidiana das sociedades contemporâneas e realizar-se como homem ou mulher.
[1] Ressalta-se que, nesta breve revisão histórica, dá-se destaque à surdez no continente europeu, de onde provém grande parte dos registos e sobre os quais são mais numerosas as investigações.
[2] No campo dos Estudos Surdos, grande parte das investigações refere-se à área da Educação e da Linguística. Por esse motivo, na historiografia da surdez, muitos dos marcos se constituem sobre esses temas.
[3] Vale ressaltar que, como bem aponta Reily (2007), esses sistemas gestuais não foram criados para se driblar a imposição de um voto, mas se configuraram como dispositivos oficiais, incorporados às práticas monásticas, assumidos para se garantir a exigência do silêncio.
[4] Esse documento conta com indicações de 127 sinais descritos verbalmente, com referências a gestos simples (itens de refeitório, objetos litúrgicos, verbos de ação, ofícios religiosos, etc.). Não há, no Monasteriales Indicia, referência a alfabetos manuais.
[5] Por exemplo, biógrafos como Berthier (NASCIMENTO, 2006) discordam da afirmação corrente de que Ponce de León tenha sido o primeiro educador de surdos; outros, por sua vez, divergem sobre as práticas metodológicas assumidas pelo monge beneditino. Até mesmo a linhagem nobre e o temperamento plácido popularmente descritos do religioso são contestados em algumas obras (PLANN, 2003).
[6] Plann (2003) afirma que os irmãos Pedro e Francisco, diferente do que é afirmado corriqueiramente, ao ingressarem no mosteiro já partilhavam um sistema gestual caseiro (uma linguagem usada entre eles e outros dois de seus irmãos, também surdos). Esses gestos, comungados aos gestos de León, facilitaram os esforços do monge no ensino das letras e da oralidade. Muito se perdeu dos registos metodológicos de Ponce de León, mas hoje se estima que o alfabeto manual (dactilológico) era um dos recursos utilizados para o ensino da escrita e da fala.
[7] Estima-se que, por motivo da grande quantidade de casamentos consanguíneos entre membros da nobreza da época, a surdez era uma condição não tão rara entre os indivíduos desses estamentos.
[8] Preceptor laico de Luis Velasco (jovem da nobreza espanhola, também da família Velasco) e autor de “Reduction de las letras y arte para enseñar a ablar los mudos” (1620), Bonet é tido como um dos pioneiros no uso de um alfabeto manual para a instrução de surdos. Com ele, a educação de surdos sai do entre-muros dos mosteiros.
[9] Nos Estudos Surdos, dada a preponderante presença das investigações ligadas à área da Linguística e da Educação, muitas pesquisas dedicam-se a aprofundar, comparar e analisar as diferentes propostas metodológicas destes educadores: se a fala era a finalidade do ensino, se os gestos cumpriam papel central ou apenas instrucional, se a escrita partia dos sinais ou da oralidade (ou vice-versa), se a prática pedagógica era oralista ou gestualista, etc.
[10] Fundado em 1775.
[11] Com a industrialização e o desenvolvimento de grandes centros urbanos, muitos sujeitos surdos, nessas cidades, passaram a conviver e a partilhar linguagens gestuais.
[12] Influenciado pelo livro de Bonet, citado anteriormente.
[13] Alguns ex-alunos surdos, depois de egressos, tornaram-se professores da instituição.
[14] Jacob Rodrigues Pereira, educador luso-francês, contemporâneo de l’Épée, que utilizava uma abordagem oralista.
[15] John Wallis (1616-1703), tido como um dos primeiros professores ingleses de surdos.
[16] Johan Konrad Amman (1669-1724), médico suíço educador de surdos.
[17] Algumas vezes, alfabetos manuais e outros gestos simples eram usados para auxiliar os trabalhos de fala, o que, no entanto, não implicava o uso e a aceitação das línguas de sinais.
[18] Abordagem que combinava práticas de oralização (para alunos aptos aos treinamentos de fala e leitura orofacial) com propostas gestualistas.
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