(Por Hugo Eiji)
Muitas são as imagens do outro sobre a cultura surda [1]. Há quem afirme ser um modelo compensatório e alternativo de convivência em um mundo regido pela normalidade do ouvir (mas, ao se entender as culturas e comunidades surdas como refúgios de coitadinhos, ignora-se a complexidade das dinâmicas culturais e esvazia-se o cunho político da afirmação); há os que ainda enxergam os surdos sob o peso dos estigmas que historicamente lhes foram imputados, e a cultura surda torna-se, por isso, um espaço de promoção e reabilitação dos deficientes; há os que veem nessa divisão um reforço negativo da alteridade. Entre tantos olhares, uma série de estereótipos ronda os surdos e as culturas surdas.
Entre pessoas envolvidas com as comunidades surdas também se veem (e se ouvem), vez ou outra, totalizações aligeiradas, estereótipos descuidados, do tipo: “surdos são diretos e sinceros”, “surdos são conversadores” [2], “surdos têm bom gosto, já que têm a visão apurada”, “surdos não são responsáveis quanto ao trabalho”, etc. Alguns desses traços pessoais, que mais apontam características individuais que atributos culturais, são por vezes relatados como indicativos das culturas surdas. Neste blog, com a intenção de se evitar folclorizações acerca do povo surdo, rejeitam-se essas caricaturas e generalizações já muito vulgarizadas.
Também vale destacar – assim como no estudo de qualquer outra cultura – as distâncias e contradições entre uma cultura ideal e uma cultura real no seio das comunidades surdas.
“Sabemos que muitas vezes há grande distância entre o que os indivíduos dizem que fazem, ou deveriam fazer, e o que verdadeiramente executam. As normas ideais têm muitas formas de cumprir-se e, inclusive, de descumprir-se (…). Contudo, a cultura ideal tem extraordinário influxo na vida do homem, pois é um guia que, sendo seguido ou não, está permanentemente presente para os indivíduos de uma cultura. (…) A maioria destas normas ideais tem como fim a preservação e coesão do grupo e, às vezes, a permanência da estrutura social e do sistema de classes e hierarquias estabelecido” (BARRIO, 2005, p. 30).
Essas rupturas são logo percebidas na complexa dinâmica das culturas surdas, em práticas e discursos que – no dia-a-dia de muitos sujeitos, surdos e ouvintes – conflitam com as normas ideais apontadas como hegemônicas no grupo [3].
A heterogeneidade das culturas surdas, com suas especificidades e contradições, seus trânsitos e processos, traz à tona um rico mosaico que compõe a riqueza e a diversidade desses grupos.
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[1] A frase faz referência ao título de um livro da investigadora surda brasileira Karin Stroebel: “As imagens do outro sobre a cultura surda” (STROEBEL, 2008).
[2] Diz-se popularmente que, quando ainda não existiam aparelhos de telefonia móvel com dispositivos de vídeo e texto, tampouco Internet ou computadores pessoais, sujeitos surdos – ao se encontrarem – passavam horas e horas e horas a “esgotar conversas”, como se o assunto acumulado nas mãos transbordasse em bate-papos e tardasse manhã, tarde, noite ou madrugada à fora. Disso surge a afirmação caricatural de que “surdo fala muito”, já bastante vulgarizada.
[3] O que acontece, por exemplo, com a rejeição do termo “deficiente”, ao mesmo tempo em que muitos direitos e privilégios são conquistados sob o argumento da deficiência (como os bilhetes gratuitos de transportes, isenções fiscais, etc.).
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