Culturas, no plural

(Por Hugo Eiji)

Se a ideia de cultura pressupõe a produção e a reprodução de sistemas de significados que regulam, codificam e organizam a experiência humana, isso não implica uma homogeneização inevitável das pessoas que a partilham. Por isso, algumas ressalvas devem ser feitas aqui – seja quanto à pluralidade das culturas surdas, seja quanto à repetição corriqueira (e descuidada) de certos estereótipos.

Ao se falar em culturas surdas faz-se importante sabê-las várias, e diversas, espalhadas pelo mundo. A cultura surda brasileira distancia-se em muitos aspectos da cultura surda japonesa, que por sua vez apresenta uma série de peculiaridades em relação à cultura surda sul-africana ou vietnamita. Dados os diferentes contextos históricos, econômicos, culturais e religiosos dos países que as abrigam, as culturas surdas se apresentam de maneiras distintas [1], posto que são simbióticas (coexistem com outras culturas, geralmente majoritárias).

Ao contrário de uma programação surda universal instalada sobre espíritos surdos aqui e alhures, invariável em qualquer país ou continente, as culturas surdas (e suas teias de significações, produções e instituições) intercambiam-se com as culturas locais majoritárias, e delas emergem como novas possibilidades de realização coletiva, criando uma enorme variedade de culturas surdas dispersas (mas em muito conectadas) ao redor do mundo.

Fronteiras nítidas distinguem as culturas surdas das culturas dominantes em que se fundam, e as primeiras não se reproduzem senão no contexto amplo de que fazem parte. Como integrantes e interdependentes de uma dinâmica cultural maior, complexa e não harmônica, as culturas surdas delimitam espaços onde se manifestam as diferenças comportadas nessa própria cultura hospedeira – e, ao se manifestar, reelaboram-na e a redefinem. Uma descontinuidade coerente com o caráter dinâmico e conflitivo dos fenômenos culturais.

Mais uma vez, reforça-se a noção de pluralidade das comunidades e culturas surdas, visto que se atrelam a substratos culturais bastante diferentes, ao mesmo tempo em que se ressalvam alguns aspectos comuns (como a experiência visual, o uso das línguas de sinais e uma série de práticas, costumes [2], bandeiras e lutas afins) que conectam esses vários grupos de diferente sítios.

 

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[1] Alguns aspectos, porém, são correntes nas várias culturas surdas espalhadas pelo mundo, como o uso das línguas de sinais e da experiência visual em sobreposição ao mundo sonoro.
[2] Práticas e costumes em muito relacionados às estratégias de reorganização do espaço, às interações fundadas nas exigências da experiência visual (dinâmicas de conversações, por exemplo), à reconfiguração de cerimônias e tradições majoritárias, etc.

 

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