(Por Hugo Eiji)
A escassez de registos históricos, o distanciamento das fontes primárias e as poucas investigações sobre o assunto não raro levam a afirmações imprecisas e pouco consistentes sobre a surdez na Idade Antiga. Quais eram as representações sociais dos surdos na Antiguidade? Que espaços esse(s) grupo(s) ocupavam na vida pública da pólis, das pequenas vilas ou tribos? Havia sistemas gestuais que levassem a cabo algum tipo de comunicação possível, mesmo que precária, entre surdos e ouvintes? Eram todos alijados, marginalizados, animalizados e abandonados à própria sorte? De que surdo se fala quando se anuncia o surdo na Antiguidade?
Para se desenhar o cenário hostil que vigorou durante a Idade Antiga, seja em historiais de sites dedicados à surdez, seja em capítulos introdutórios de textos sobre o assunto, frases e expressões como “desprovidos de qualquer direito”, “bestializados”, “abandonados em praças públicas”, “lançados ao mar” e “atirados de rochedos” por vezes saltam aos olhos, enfáticas, repugnantes, com o horror que a brutalidade de outrora provoca hoje.
Mas, em certa medida, essas são afirmações totalizadoras e reducionistas. Com a intenção de não enfatizá-las de maneira descuidada, evitar-se-á, aqui, esse tipo de generalização, com a atenção de quem caminha por solo pedregoso.
Esquivar-se de afirmações generalizadoras, no entanto, não implica supor um contexto sempre acolhedor para as pessoas surdas. Ao mesmo tempo em que a surdez e outras “anormalidades” eram recebidas com gestos caridosos – sob as leis hebraicas, por exemplo, os “surdos-mudos” eram cuidados e protegidos como crianças (BRADDOCK; PARISH, 2001) –, eram também assumidas como castigos divinos, imputados por forças sobrenaturais.
Abandonos e sacrifícios eram práticas cometidas, também, contra esse “outro” visto como indomesticável, intratável e selvagem. Entre a caridade e a rejeição, o estigma da surdez comumente deixava o indivíduo à sorte, ou à fúria, dos Deuses.
O retrato de sacrifícios generalizados de crianças surdas, entretanto, é bastante frágil. Embora (re)afirmado em uma série de trabalhos no campo dos Estudos Surdos, esses (des)casos são revistos de forma crítica por alguns historiadores. Entre eles, Braddock e Parish (2001) afirmam que grande parte dos infanticídios levados a efeito na Antiguidade dava-se, antes, por razões econômicas. Já os sacrifícios de cariz eugênico eram praticados, sobretudo, contra os pequeninos que traziam traços aparentes de deformidade, e eram motivados tanto por questões funcionais (ao se assumir a incapacidade do rebento para uma vida “útil”) como por aspectos religiosos (já que a imolação era feita para apaziguar os castigos imputados pelos Deuses). A surdez, como uma condição pouco visível nos recém-nascidos, não costumava lhes dar o mesmo fado daqueles que logo eram percebidos como aleijados e deformados.
Quanto às diferentes formas de sociabilidades no cotidiano de surdos na Antiguidade, ainda pouco é sabido para além de descrições breves. Na Roma Antiga, por exemplo, a primazia da língua oral no dia-a-dia da vida pública (nos espaços de participação política, nos comícios e festejos, nas transações de vários tipos etc.), bem como a importância da oratória na formação de um cidadão, levam a crer que à grande parte dos surdos [1] restava um pequeníssimo espaço de atuação.
Muitos dos processos judiciais exigiam a presença física dos interlocutores, em rituais e protocolos que se fundavam na palavra falada: a audição e a oralização eram, por excelência, condições de acesso à participação efetiva em trâmites corriqueiros. Por esses embaraços, muitos surdos eram segregados de práticas cotidianas – das mais comezinhas às mais formais, do cultivo do campo ao esforço da guerra – na vida pública.
Se contavam com alguma participação na política, esta era – ao que tudo indica – bastante limitada. Estar privado da experiência da língua oral, por exemplo, constituía um grande obstáculo para o aprendizado do mos maiorum [2] (os costumes dos antepassados e ancestrais, que garantiam as virtudes e a coesão da sociedade) e para a concretização dos afazeres de cidadania.
No entanto, vale ressaltar que investigações na área dos Estudos Clássicos apontam para pormenores nas relações de surdos com algumas exigências protocolares da República e do Império Romano, desalinhando afirmações enfáticas que legavam ao surdo a obscuridade e o irremediável alheamento. Gardner (1993), em seu livro “Being a Roman Citizen“, dedica um sub-capítulo aos “surdos-mudos” [3]. Ao discorrer sobre as práticas de manumissão [4], por exemplo, a autora cita registos que ponderam sobre as formas pelas quais esses processos podiam ser levados a cabo por proprietários surdos:
“(…) Por uma questão de conveniência prática (utilitas), pensava [5], um homem nascido surdo deveria ser autorizado a realizar a manumissão. Ulpiano cita esta posição, que não parece, contudo, ter sido amplamente aceita” [6] (GARDNER, 1993, p.162, tradução nossa).
A investigadora cita apontamentos que sugerem outras formas de se realizar tal processo, de maneira informal, por meio de “uma transferência fiduciária dos escravos para um terceiro, para que eles pudessem ser devidamente libertados” [7] (GARDNER, 1993, p. 162). Esse terceiro (proprietário), capaz de ouvir e falar, cumpriria as exigências protocolares da manumissão, fundadas na oralidade. No século III, essas formalidades passaram a ser assumidas por lictores (assistentes de magistrados) e as palavras habitualmente exigidas eram tomadas como já proferidas, o que favoreceu proprietários surdos-mudos, como afirma a autora.
Não se pretende, neste texto, aprofundar a investigação sobre a (precária) participação política de alguns (poucos e específicos) indivíduos surdos na Roma Antiga [8], tampouco enveredar pela análise da surdez em outras regiões, como África ou Médio Oriente [9]: o que se pretende, antes, é – de forma breve – esquivar-se de afirmações totalizadoras e generalizantes, a fim de não reforçar imprecisões e sensos comuns no campo dos Estudos Surdos. A história do povo surdo durante a Antiguidade, em desacordo com afirmações aligeiradas, é cheia de meandros, atravessada por um sem-fim de fatores – alguns sequer conhecidos.
Um dos principais legados da Antiguidade Clássica, contudo, é a concepção aristotélica que vincula a fala à estruturação do pensamento: a voz (phoné) como condição para a linguagem, e a linguagem (e o logos) como processo sine qua non para o homem realizar-se como animal político.
“É na Política (1, 2, 1253) que vai ser explicada a natureza da linguagem. O animal político (zôon politikón) liga-se necessariamente à faculdade humana de falar, pois sem linguagem não haveria sociedade política. (…) A natureza não faz nada em vão e, dentre os animais, o homem é o único que ela dotou de linguagem. Sem dúvida a voz (phoné) é uma indicação de prazer ou de dor, e também se encontra nos outros animais; o lógos, porém, tem por fim dizer o que é conveniente ou inconveniente e, conseqüentemente, o que é justo ou injusto” (NEVES, 1981, p. 58).
A elaboração da linguagem (a construção do logos), por essa perspectiva, permite ao homem as noções de bem e mal, justo e injusto, além de outros tantos juízos que sustentam a formação de famílias e, por conseguinte, a manutenção do Estado (a forma acabada de sociedade). A fala, por estes pressupostos, figura como suporte imprescindível para o cumprimento da vocação política do ser humano.
Parte dos sujeitos surdos, por isso, eram tidos como sub-humanos, incapazes de concretizar a finalidade política a que o homem, por sua natureza racional, destinava-se. Por se acreditar que não tinham acesso ao universo da fala (voz/phoné), tampouco à complexidade de uma língua, eram (des)tratados como párias – seres não educáveis, bestiais, improváveis para quaisquer atividades intelectivas.
As bases aristotélicas que articulam voz, fala, linguagem e pensamento fundaram, no mundo ocidental, compreensões sobre o sujeito surdo que, ainda hoje, não só ecoam no senso comum como sustentam uma série de medidas (políticas, pedagógicas, culturais, médicas, etc.) em relação a esse grupo. Os silogismos que se criaram a partir dessas premissas deslocaram o indivíduo surdo para um espaço marginal, em que deveria ser curado, domado, sacrificado, abandonado, cuidado etc. – frequentemente em uma posição de subjugação, opressão ou tutela do “homem normal”.
[1] Aqui é referido o surdo homem pré-linguístico que não dominava a língua oral majoritária.
[2] “O mos maiorum, cujo suposto abandono foi utilizado como explicação para as convulsões vivenciadas ao longo da história do Estado romano, pode ser compreendido como um conjunto de regras de conduta, morais e políticas, não sistematizado, transmitido no seio da aristocracia senatorial tradicional. Conforme Pereira (2002, 359-360), o mos maiorum jamais foi um código de leis escritas, mas constituiu-se numa ética a ser observada pela nobreza, que legitimava e disciplinava as ações, que orientava as práticas políticas e religiosas” (LEMOS, 2010, p. 48).
[3] Como se refere a autora.
[4] A concessão da liberdade a um escravo pela vontade de seu proprietário: um processo que exigia a palavra oral (dita e ouvida) como elemento protocolar de ratificação.
[5] Publius Iuventius Celsus, jurista romano do séc. II d.C.
[6] “For the sake of practical convenience (utilitas), he thought, a man born deaf ought to be allowed to manumit. Ulpian quotes this opinion, which does not seem, however, to have been generally accepted”.
[7] “(…) a fiduciary conveyance of the slaves to a third person to allow them to be properly freed”.
[8] Em grande medida, os surdos menos marginalizados eram aqueles que conseguiam transitar pela língua majoritária e que faziam parte de estratos sociais mais privilegiados.
[9] Há registos que indicam que membros surdos da corte otomana partilhavam uma linguagem gestual, ensinando-a também para outros ouvintes, durante os séculos XV e XVI, por exemplo (Braddock; Parish, 2001).
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